ESSE ANIMALZINHO SHAKESPERIANO
Tirou os sapatos ao entrar no quarto
Tirou as meias após tirar os sapatos
As unhas após tirar as meias
E a pele que veste os músculos e
Os músculos que revestem os ossos
Não encontrou alma não encontrou as chaves
Bocejou sem lábios e dormiu
Sem apagar as luzes sem escovar os dentes.
DIVINA COMÉDIA
Era, enfim, o filho quem ligava
E perguntava como se sentia
E como era a comida, as enfermeiras
E contava também que traduzira
Nesses tempos de Dante o Purgatório
(Sua mania de iniciar tudo ao avesso)
Contou que se sentia vil e cansado
Foram 33 cantos traduzidos
E nada havia mudado. Salvo alguns
Tufos caídos da cabeça, salvo
Uma maior vontade de fumar
Uma menor coragem ante o absurdo
O velho, fraturado de ternura,
Respondeu que traduziriam juntos
Juntos o pai e o filho o Paraíso
Por telefone, por necessidade.
Logo se despediram e assim tudo
Voltava a mesmaria de todo dia
O branco das paredes e das roupas
O branco dos lençóis dos azulejos
Tão esterelizados quanto o Céu
E respirou profundamente o velho
Sorriu como se os lábios acenassem
E de olhinhos fechados dormiu como
Se caísse ao Inferno.
A GRANDE BELEZA
I
Todas as vezes que você abriu a porta do teu apartamento
E desceu pelo elevador
Como as folhas
Que planam
Como plumas
Na dura fronteira entre
O gramado e a rua
Desse modo
Você procura
Desesperadamente procura
A grande beleza
Com seus sapatos heróicos
Seus olhos sáficos
II
E assim esperamos impacientes o estrondo
De algum anjo
Como um bombadeiro passeando pelo céu
Mas os anjos, ao que parece,
Estão sempre se atrasando
III
Você me diz todo anjo é terrível
Eu repito todo anjo é terrível
E pergunto se você
Ao sair de um fastfood ou de um cinema
Reconheceria a grande beleza
Planando
Plumando
E delicadamente
Ajeitando dos olhos as melenas
Saberia diferenciar
Qual olho guarda o deslumbre
E qual olho guarda o descaso.
O.
Não se assuste acaso acorde e me olhe te olhando
Não é atavismo romântico
Etimologia necrófila no meu sonho
É que há pouco li
O que disse merleau-ponty
Sobre o homem e o mundo
Disse que tudo no mundo simultanemente se percebe
O homem olha o cão
O cão olha o homem
O homem olha a cadeira
A cadeira olha o homem
As cadeiras se entreolham
Piscam entre si, se conversam, se namoram
Fiquei assustado
Sonhei com tudo claro
E uma fechadura ambiversa
O buraco da fechadura
Era deus? Fenômeno? Um nadinha me acenando entre?
Acordei. Te olhei, assim.
Você dormia
Sem saber de nada você dormia
Sem saber que dormia você dormia, alheia, abstença
E você acordava
E me olhava te olhando
Nossos olhões arregalados
Se olhando no escuro
VOCÊ ME DIZ QUE É COMPLICADO
você me diz que é complicado
tudo muito complicado
todo mundo e tudo o que no mundo há
ah é complicado você diz
mas você
dentre todas as coisas complicadas
súplicas repúblicas réplicas tréplicas trepadas
dentre todas as coisas complicadas
já tentou alguma vez dizer que ama
e que perdoa
e que entende que coisas
como castelos e casas em construção se transformam em ruína
já tentou alguma vez inverter a ruína
ou construir um castelo de areia longe do mar
ou amar
mesmo que de um jeito inconsistente
você
já tentou alguma vez falar
pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico
és muy fácil amar un león
você me responde como se fosse garcia lorca ao final de uma
tourada
jogar altinha na praia é muito fácil meu deus mas como eles
conseguem quanto tempo que absurdo que marazul
falar teu nome é muito fácil, de trás pra frente. ana, teu nome é
um palíndromo
é fácil falar grego se você for um tiozão e se for domingo na hora
do almoço
é fácil ser tiozão se a sobremesa for pavê
é fácil escrever um poema intraduzível para as línguas de lugares
onde as pessoas não comem pavê
to see or to eat. that’s the question
você me diz que é complicado
tudo muito complicado
você
entre todas as coisas complicadas.
Lucas Ferreira nasceu em São Paulo, cresceu em Porto Alegre e agora vive no Rio de Janeiro, onde cursa Letras na UFRJ. Ganhou o Prêmio Barueri de Literatura em 2015. E hoje trabalha com pesquisa pelo CAPES e com monitoria de poesia brasileira pra UFRJ.
Comment (1)
Parabéns ao Lucas, alguns dos melhores poemas que vi aqui na Aboio (aliás, parabéns à Aboio também)!