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5 poemas de Lucas Ferreira

por Lucas Ferreira
lucas ferreira

ESSE ANIMALZINHO SHAKESPERIANO

Tirou os sapatos ao entrar no quarto
Tirou as meias após tirar os sapatos
As unhas após tirar as meias
E a pele que veste os músculos e
Os músculos que revestem os ossos
Não encontrou alma não encontrou as chaves
Bocejou sem lábios e dormiu
Sem apagar as luzes sem escovar os dentes.


DIVINA COMÉDIA

Era, enfim, o filho quem ligava
E perguntava como se sentia
E como era a comida, as enfermeiras

E contava também que traduzira
Nesses tempos de Dante o Purgatório
(Sua mania de iniciar tudo ao avesso)

Contou que se sentia vil e cansado
Foram 33 cantos traduzidos
E nada havia mudado. Salvo alguns

Tufos caídos da cabeça, salvo
Uma maior vontade de fumar
Uma menor coragem ante o absurdo

O velho, fraturado de ternura,
Respondeu que traduziriam juntos
Juntos o pai e o filho o Paraíso

Por telefone, por necessidade.
Logo se despediram e assim tudo
Voltava a mesmaria de todo dia

O branco das paredes e das roupas
O branco dos lençóis dos azulejos
Tão esterelizados quanto o Céu

E respirou profundamente o velho
Sorriu como se os lábios acenassem
E de olhinhos fechados dormiu como

Se caísse ao Inferno.


A GRANDE BELEZA

I

Todas as vezes que você abriu a porta do teu apartamento

E desceu pelo elevador

Como as folhas

    Que planam

        Como plumas

Na dura fronteira entre

O gramado e a rua

Desse modo

Você procura

Desesperadamente procura

A grande beleza

        Com seus sapatos heróicos

            Seus olhos sáficos

II

E assim esperamos impacientes o estrondo 

    De algum anjo

Como um bombadeiro passeando pelo céu

Mas os anjos, ao que parece,

Estão sempre se atrasando

III

Você me diz todo anjo é terrível

Eu repito todo anjo é terrível

E pergunto se você

Ao sair de um fastfood ou de um cinema

Reconheceria a grande beleza

    Planando

        Plumando

        E delicadamente

    Ajeitando dos olhos as melenas

Saberia diferenciar

Qual olho guarda o deslumbre

E qual olho guarda o descaso.


O.

Não se assuste acaso acorde e me olhe te olhando
Não é atavismo romântico
Etimologia necrófila no meu sonho
É que há pouco li
O que disse merleau-ponty
Sobre o homem e o mundo

Disse que tudo no mundo simultanemente se percebe
O homem olha o cão
O cão olha o homem
O homem olha a cadeira
A cadeira olha o homem
As cadeiras se entreolham
Piscam entre si, se conversam, se namoram

Fiquei assustado
Sonhei com tudo claro
E uma fechadura ambiversa
O buraco da fechadura
Era deus? Fenômeno? Um nadinha me acenando entre?
Acordei. Te olhei, assim.

Você dormia
Sem saber de nada você dormia
Sem saber que dormia você dormia, alheia, abstença
E você acordava
E me olhava te olhando
Nossos olhões arregalados
Se olhando no escuro


VOCÊ ME DIZ QUE É COMPLICADO

você me diz que é complicado
tudo muito complicado   
todo mundo e tudo o que no mundo há
ah é complicado você diz

mas você
dentre todas as coisas complicadas
súplicas repúblicas réplicas tréplicas trepadas
dentre todas as coisas complicadas 

já tentou alguma vez dizer que ama 
e que perdoa
e que entende que coisas 
como castelos e casas em construção se transformam em ruína

já tentou alguma vez inverter a ruína
ou construir um castelo de areia longe do mar
ou amar
mesmo que de um jeito inconsistente

você
já tentou alguma vez falar
pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico

 és muy fácil amar un león
você me responde como se fosse garcia lorca ao final de uma 
tourada

jogar altinha na praia é muito fácil meu deus mas como eles 
conseguem quanto tempo que absurdo que marazul

falar teu nome é muito fácil, de trás pra frente. ana, teu nome é 
um palíndromo

é fácil falar grego se você for um tiozão e se for domingo na hora 
do almoço
é fácil ser tiozão se a sobremesa for pavê

é fácil escrever um poema intraduzível para as línguas de lugares 
onde as pessoas não comem pavê
to see or to eat. that’s the question

você me diz que é complicado
tudo muito complicado
você 
entre todas as coisas complicadas.


Lucas Ferreira nasceu em São Paulo, cresceu em Porto Alegre e agora vive no Rio de Janeiro, onde cursa Letras na UFRJ. Ganhou o Prêmio Barueri de Literatura em 2015. E hoje trabalha com pesquisa pelo CAPES e com monitoria de poesia brasileira pra UFRJ.

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